Jogo Sujo

Combate às milícias no Rio esbarra em impunidade e corrupção Policial

Antes de virar chefe da maior milícia do Rio e espalhar pânico pela Zona Oeste, Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, foi capturado pela polícia em duas ocasiões. E acabou solto em ambas. Na primeira vez, em 2015, foi beneficiado por uma decisão judicial e saiu da cadeia pela porta da frente. Na segunda, em 2017, uma investigação apontou que ele pagou R$ 20 mil aos policiais civis responsáveis por sua prisão e deixou a delegacia sem ser incomodado. No quinto e último dia da série especial sobre as milícias, dentro do projeto exclusivo para assinantes Tem Que Ler, O GLOBO mostra como a impunidade e a corrupção policial são entraves para o combate aos grupos paramilitares do Rio.

Zinho passou quatro dias na cadeia na primeira vez em que foi preso. Ainda não era era o chefe, mas já o apontavam como “gerente de finanças” do bando. Ele foi preso em flagrante com dois seguranças — entre eles, um PM —, dinheiro, armas e cadernos de contabilidade. No plantão judiciário de 1º de novembro de 2015, um domingo, o desembargador Siro Darlan aceitou o argumento da defesa de que a audiência de custódia ainda não havia sido realizada e determinou o relaxamento da prisão. Zinho acabaria condenado, nesse processo, a seis anos de prisão.

Em janeiro de 2017, ele já acumulava mais de 16 anos de prisão em penas e estava foragido quando foi flagrado por policiais civis da 36ª DP (Santa Cruz) cometendo crime ambiental. Segundo a investigação que culminou na Operação Quarto Elemento, deflagrada pelo Ministério Público do Rio em 2018, o miliciano foi detido em seu Porsche Cayenne, avaliado em mais de R$ 400 mil, em frente a um terreno que estava sendo grilado pelos paramilitares, com máquinas revirando o solo.

Zinho foi levado para a delegacia e negociou sua liberdade por cerca de três horas com os agentes. De acordo com depoimento que faz parte da investigação, ele afirmou que seu irmão, Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, já tinha um acerto financeiro com a delegacia “para não mexer com o pessoal da milícia”. No final das contas, aceitou pagar R$ 20 mil e foi liberado. Para eliminar rastros da prisão, policiais alteraram o registro de ocorrência e apagaram do sistema da Polícia Civil o depoimento de Zinho. Em 2022, o grupo responsável por sua libertação foi condenado a penas de até 119 anos de prisão.

Zinho jamais foi capturado novamente e, em 2021, após a morte de seu irmão Wellington da Silva Braga, o Ecko, assumiu a chefia da milícia. No ano seguinte, já um dos criminosos mais procurados do Rio, ele teve nova vitória na Justiça: a juíza Alessandra de Araújo Bilac, da 42ª Vara Criminal, o absolveu num processo em que era acusado pelo crime de constituição de milícia privada e ainda desbloqueou os recursos da empresa Macla Extração e Comércio de Saibro, que, segundo a Polícia e o MPRJ, era usada para lavagem de dinheiro. A investigação que culminou no processo afirma que a empresa teria movimentado, em 5 anos, R$ 41 milhões.

Zinho não foi o único membro da família Braga beneficiado por decisões judiciais. Wallace da Silva Braga, o Batata, quarto dos irmãos que vêm se sucedendo no comando da milícia, foi detido em maio de 2021 por agentes da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco). Na ocasião, segundo a Polícia Civil, ele teria resistido à prisão, tentou tomar o fuzil de um dos policiais e ameaçou os agentes “em nome da milícia”.

Em 2022, Batata chegou a ser condenado a um ano de detenção em regime aberto, mas somente pelo crime de resistência — conseguiu se livrar da acusação de constituição de milícia privada, que poderia levá-lo ao regime fechado. O juiz Marcello Rubioli, responsável pela sentença, alegou que a polícia não conseguiu produzir provas da participação de Batata na milícia. Mesmo assim, sua defesa recorreu da decisão e, em março passado, a 6ª Câmara Criminal o absolveu de todas as acusações.

O caso de Batata não é incomum. Um levantamento feito pelo GLOBO em 82 processos judiciais, nos quais 204 réus responderam pelo crime de constituição de milícia no estado entre 2013 e 2022, revela que mais de um terço dos acusados (38%) foi inocentado. Na maioria das sentenças que geraram absolvições, os magistrados consideraram que os elementos colhidos na prisão em flagrante não foram suficientes para uma condenação.

A morte de Faustão

Matheus da Silva Rezende, o Faustão, número 2 da hierarquia da milícia morto na semana passada — em resposta, a milícia espalhou o caos queimando 35 ônibus na Zona Oeste da cidade —, tem sua própria história de impunidade. É apontado pela polícia como responsável por mais de 20 assassinatos, afinal era o principal homem de Zinho nas ações de ataque a rivais. No entanto, tinha somente dois mandados de prisão em aberto, e só um por homicídio: o de Jerônimo Guimarães, o Jerominho, fundador da Liga da Justiça, milícia pioneira. Até a morte de Faustão, os inquéritos dos demais assassinatos com sua participação não haviam sido encaminhados à Justiça.

Economista e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), Joana Monteiro bate na tecla da impunidade e afirma que um caminho para o combate a esses grupos é a investigação de homicídios:

— É fundamental monitorar e priorizar a investigação de todas as mortes violentas no Rio. A polícia não dá valor para isso porque acha que são criminosos se matando, que a maioria que morre é bandido. Então, “deixa eles se matarem”, dizem. Só que, ao deixar eles se matarem, o estado vai perdendo a sua capacidade de investigar. Você permite que policiais sejam pagos para não investigar e naturaliza mortes violentas — afirma.

Dados mais recentes do estudo “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz, mostram que, em 2019, só 16% das investigações de assassinatos abertas no Rio resultaram em denúncias contra o autor do crime até o final de 2020.

É fundamental monitorar e priorizar a investigação de todas as mortes violentas no Rio. A polícia não dá valor para isso porque acha que são criminosos se matando, que a maioria que morre é bandido

— Joana Monteiro, economista e professora da FGV

Alberto Kopittke, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, afirma que o enfraquecimento das milícias também passa pelo combate à corrupção policial.

— As corregedorias precisam atuar mais fortemente. Além disso, temos de ter um sistema prisional eficiente, que de fato isole os criminosos — diz.

As milícias no Rio:

As milícias são grupos paramilitares, que disputam com os traficantes espaço na subjugação de comunidades carentes e bairros na capital e em outros municípios fluminenses. Em 2005, reportagem do GLOBO revelou que essas quadrilhas formadas por policiais e ex-policiais tinham assumido o controle de 42 favelas na Zona Oeste do Rio.

Após uma década de expansão e fortalecimento, os grupos milicianos dominam e exploram regiões que se espalham por dezenas de bairros do Rio e no entorno da capital, brigam por novos territórios com um arsenal militar. Corrompem, matam e se infiltram nas instituições. Quase sempre sem punição.

Em meio a uma crise interna, a maior milícia do Rio deu, no dia 23 de outubro, uma demonstração de força e parou a capital do estado em represália à morte de um dos integrantes de sua cúpula. Após Matheus da Silva Rezende, o Faustão, apontado como número 2 da hierarquia da milícia chefiada por seu tio, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, ser morto a tiros pela polícia, seus comparsas incendiaram 35 ônibus e um trem e impactaram o transporte público em uma dezena de bairros da Zona Oeste.

Um depoimento prestado à Polícia Civil escancara a relação entre o avanço da milícia no estado e a atuação de agentes públicos. André Vitor de Souza Corrêa, o Dufaz, ex-miliciano que rompeu com o bando, se entregou e resolveu contar o que sabia sobre a quadrilha para tentar um acordo com a Justiça. Segundo Dufaz, quando integrava o grupo e fazia extorsões de comerciantes em Itaguaí, na Baixada Fluminense, ele circulava pela cidade armado e usando a farda da PM, mesmo não sendo policial. Nessas rondas, quando passava por blitzes do batalhão local, os agentes “o deixavam seguir viagem normalmente, inclusive costumava lanchar com os policiais militares, apertavam as mãos e batiam papo”, de acordo com o relato.

O ex-miliciano ainda contou que policiais vendiam para a milícia armas apreendidas em operações contra o tráfico e entregavam rivais que haviam sido detidos para que fossem executados pelos paramilitares. A PM também participava das invasões dos paramilitares em favelas da região: antes dos ataques, agentes fardados entravam nas comunidades com viaturas “para espantar os caras”, e o bando ocupava o local sem resistência. “Os milicianos não tinham medo da PM, pois era a corporação que dava força à organização”, resumiu. Após prestar o depoimento, Dufaz foi executado a tiros em fevereiro de 2019.

A milícia é protegida pelo Estado, ela sai de dentro do Estado, com lastro político e partidário

— Jacqueline Muniz, antropóloga

A infiltração na política é outro desafio. Em abril de 2020, por exemplo, paramilitares da Baixada Fluminense se reuniram com pré-candidatos a prefeituras de municípios da região para negociar apoio da milícia nas eleições daquele ano em troca de vantagens como secretarias e licitações, caso alguns dos presentes fossem eleitos. O encontro foi gravado — e o registro foi encontrado pelo MPRJ na conta de e-mail de um dos integrantes da milícia. No meio da reunião, Danilo Dias Lima, o Tandera, que chefiava a quadrilha na ocasião, chegou a colocar um fuzil em cima da mesa. “Enquanto a gente não alcançar o poder Legislativo, o poder Judiciário e o Executivo, a gente não vai conseguir nada. A gente não vai sair desse rolo. A gente tem que ter o direito a uma licitação, a gente tem que ter direito a alguma secretaria. Tá me entendendo?”, disse.

— A milícia é protegida pelo Estado, ela sai de dentro do Estado, com lastro político e partidário. Por isso esses grupos se tornaram sócios ou patrões de atores políticos, como vereadores, deputados e senadores — diz a antropóloga Jacqueline Muniz.

Fonte: O Globo

Redação

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