Jogo Sujo

‘O CRIME EM CAMPANHA’: NO SERTÃO NORDESTINO, A PISTOLAGEM QUE MATA E PEDE VOTOS

Na garupa de uma moto, Patrícia Pereira do Nascimento Andrade percorre as ruas de paralelepípedo de Princesa Isabel, no interior da Paraíba, atrás de votos. A assistente social, de 43 anos, conta com o trabalho que realiza na área da saúde, transportando pacientes de carro para consultas e cirurgias na capital João Pessoa, para obter uma vaga na Câmara Municipal pelo PSB. A cada porta que bate, ela é festejada como uma celebridade local. “Não fosse por essa mulher, hoje eu não estaria enxergando”, revela o aposentado Antônio de Souza, de 72 anos, ao ver Patrícia, responsável por levá-lo ao médico que o curou de uma catarata, na tarde de 9 de setembro. No próximo quarteirão, novas juras: “Aqui em casa, ela já tem quatro votos”, promete Vanessa Bezerra, de 40 anos, que conheceu Patrícia em um projeto de ginástica para mulheres.

A troca de gentilezas na campanha contrasta com a trajetória do principal cabo eleitoral da candidata. Ela é mulher e herdeira política de Rinaldo Eufrasino de Andrade, ex-vereador do município condenado a 10 anos e 4 meses de prisão sob a acusação de chefiar um grupo de extermínio que deixou um rastro de sangue ao longo da última década. No segundo capítulo da série especial sobre a influência do crime na política pelas cinco regiões do país, o GLOBO mostra como a pistolagem e a disputa por votos se misturam com frequência no sertão nordestino.

Passei vários anos com vergonha de andar na rua, ouvi que era “mulher de bandido”. Estou disputando a eleição porque prometi pra mim mesma e pro meu marido que vamos voltar para a Câmara de cabeça erguida

— Patrícia de Rinaldo do Gavião, após visitas a eleitores

‘Vamos voltar à Câmara juntos’

Em maio de 2023, uma decisão da Justiça mexeu no xadrez eleitoral da cidade: após três anos cumprindo pena numa penitenciária de segurança máxima em João Pessoa, Rinaldo progrediu ao regime semiaberto, deixou a cadeia e voltou a Princesa Isabel. Atualmente, ele usa tornozeleira eletrônica e é autorizado a sair de casa para trabalhar, mas precisa voltar até as 20h. Mesmo após a condenação, o ex-vereador nega os crimes e sustenta ter sido alvo de uma “armação” para tirá-lo da política.

— Se eu tivesse realmente cometido todos esses crimes, você acha mesmo que eu voltaria para cá de cabeça erguida? O povo daqui sabe que fui vítima de uma injustiça. Não tem prova nenhuma contra mim, nenhuma imagem de câmera, nenhuma mensagem, nada — enumerou Rinaldo enquanto colhia milho na propriedade de um amigo.

Essa versão, contudo, é contestada até mesmo por antigos aliados. Subordinados implicaram diretamente o chefe em pelo menos três mortes — um dos denunciantes também foi, ele próprio, alvo de dois atentados. Os depoimentos também apontaram que o então vereador chegou a encomendar o assassinato de dois colegas de Câmara, em relatos decisivos para a prisão e posterior condenação.

Embora jure inocência, Rinaldo explica que não comparece aos eventos de campanha da mulher “para evitar problemas com a Justiça”. Mesmo ausente nas agendas, como na caminhada acompanhada pelo GLOBO, a figura do pistoleiro paira, literalmente, sobre a candidatura — na urna e nos adesivos espalhados pelas casas de Princesa Isabel, uma cidadezinha com pouco mais de 20 mil habitantes, a postulante se apresenta aos eleitores como Patrícia de Rinaldo do Gavião, apelido pelo qual o marido é conhecido, em referência a uma zona rural no município.

Rinaldo era uma figura ascendente na política local quando foi alvo da Operação Manto da Justiça, da Polícia Civil da Paraíba, em janeiro de 2020. Três anos antes, o agricultor conseguiu assumir seu primeiro mandato como vereador por conta de um arranjo: com 464 votos — a maioria de moradores do Sítio Gavião, uma comunidade com cerca de 80 famílias que abriga a propriedade onde Rinaldo cria gado e planta milho —, ele só conseguiu uma das dez vagas na Câmara depois que outros dois eleitos de seu partido, o PSB, viraram secretários na prefeitura.

A atuação parlamentar de Rinaldo ajuda a compreender por que é importante para o casal retomar uma cadeira no Legislativo municipal. Como vereador, ele se posicionava como representante da área rural, cobrando benesses como a abertura de estradas e a construção de postos de saúde nos povoados. Aos poucos, a fama de benfeitor extrapolou o Sítio Gavião, ampliando a influência do político e a expectativa de blindagem por conta do cargo público — Patrícia também veste a capa de protetora da população e se diz “pronta, preparada e querendo lutar pelo povo”.

Diante da popularidade crescente, a expectativa para 2020 era que Rinaldo virasse um dos campeões de voto na cidade— até que ele foi preso acusado de três assassinatos e duas tentativas de homicídio. Arquiteto da candidatura da mulher, o ex-vereador conta com a eleição de Patrícia para recuperar o prestígio.

O que era o meu sonho virou o sonho dela. Vamos voltar à Câmara juntos

— Rinaldo do Gavião sobre a mulher, Patrícia

‘Assassinatos entre ambos os lados’

Feudo político de José Pereira Lima, o “coronel” Zé Pereira, um dos mais influentes latifundiários do país no início do século XX, Princesa Isabel chegou a ser declarada independente do estado da Paraíba à época. Conhecido como arquirrival do bando do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, Zé Pereira resolveu que a cidade não mais seria subordinada à autoridade do governador João Pessoa, seu inimigo político. De março a agosto de 1930, o Território Livre de Princesa, como foi nomeado, teve leis, hino, bandeira e até Exército próprios. Os confrontos entre os revoltosos e a Polícia Militar deixaram centenas de mortos.

O longo histórico de violência e disputas armadas faz com que o percurso de Rinaldo do Gavião esteja longe de configurar um caso isolado no sertão nordestino: denúncias sobre a conexão entre pistoleiros e a política são fartas na região. Em abril do ano passado, Aurélio França, o Nego Aurélio (PMDB), presidente da Câmara de Vereadores de Parnamirim, em Pernambuco, a 200km de Princesa Isabel, foi preso sob suspeita de integrar uma rede de grupos de extermínio investigada por pelo menos oito homicídios. Diálogos interceptados pela Polícia Federal (PF) apontam para a participação direta de Aurélio em pelo um desses crimes: o assassinato de Josinaldo Braz da Silva, em dezembro de 2021.

A vítima havia sido detida pela morte de um PM, mas acabou liberada por não haver ordem de prisão em aberto. “Pensei que essa porra tinha mandado, mas não tinha. Se tiver mais de uma balaclava, desenrola aí”, escreveu Aurélio, policial civil licenciado após assumir o mandato, a um comparsa. Horas depois, Josinaldo foi executado com 27 tiros na porta da delegacia.

Um dos alvos do bando também era vereador. Ednaldo Isidório Neto, o Zé Dida Gaia, eleito em Serra Talhada — cidade em Pernambuco onde nasceu Lampião, entre Parnamirim e Princesa Isabel —, foi morto em junho de 2022, enquanto abastecia o carro num posto. O político era integrante do Clã Gaia, uma família de elos históricos com a pistolagem. Segundo a PF, “a motivação do crime seria vingança, dado os grandes ressentimentos entre o Clã Gaia e a associação miliciana, com assassinatos entre ambos os lados”.

Aurélio só ficou um mês preso. Quando foi libertado, o vereador comemorou com uma carreata pela cidade. Atualmente, ele tenta a reeleição. O GLOBO não conseguiu contato com sua defesa.

‘Desconfio que Rinaldo quer me matar’

As primeiras suspeitas da atuação de Rinaldo do Gavião como pistoleiro remontam a maio de 2014, quando Ranieri Maia de Sousa, apontado como um dos integrantes de seu bando, foi vítima de uma emboscada. Ele sobreviveu e, em depoimento, acusou o chefe. “Há algum tempo, desconfio que Rinaldo quer me matar”, narrou. Em setembro, Ranieri foi, de fato, executado em novo atentado. A Polícia Civil apreendeu 17 munições calibre 12 na casa de Rinaldo, mas a investigação não avançou.

Só cinco anos depois, quando Rinaldo já era vereador, novas provas surgiriam: no início de 2020, outros dois matadores procuraram a polícia para contar o que sabiam sobre a atuação do grupo de extermínio comandado pelo político. O primeiro foi Jonas Galdino da Silva Melo, o Peba, que indicou Rinaldo como mandante de mais um atentado: o que ele próprio havia sofrido um mês antes de desnudar as atividades do bando.

Na noite de 17 de dezembro de 2019, Peba estava em um bar da cidade quando foi atingido por três disparos feitos por um homem na garupa de uma moto em alta velocidade. O ataque foi descrito como uma tentativa de queima de arquivo, uma vez que o pistoleiro sabia dos homicídios em que o comparsa estava envolvido. Galdino contou ainda que, dias antes, outro matador de aluguel o alertou de que Rinaldo oferecera R$ 20 mil a quem topasse executá-lo.

No depoimento, Peba também citou outros três crimes encomendados por Rinaldo: os assassinatos de dois agiotas a quem ele devia dinheiro — José Bernardino Neto e Joaquim Antônio da Silva, executados a tiros em 2013 — e o homicídio de Ranieri, que estaria “sabendo demais”.

Apenas dois dias depois, outro matador de aluguel, Marcelo Mendes Pereira, o Bocão, também compareceu à delegacia, admitiu que trabalhava para Rinaldo, fechou um acordo de colaboração premiada e deu mais detalhes sobre os crimes do ex-chefe. Ele corroborou o relato de Peba sobre os homicídios dos agiotas em 2014 — “ele mandava matar para não pagar suas dívidas” — e afirmou que, após ser contratado para cometer esses dois assassinatos, Ranieri virou alvo. Coube a Bocão, mediante o pagamento de R$ 6 mil, a missão de silenciar o pistoleiro. Como a vítima sobreviveu, Rinaldo exigiu que o serviço fosse terminado dentro do hospital. “Não aceitei, não tinha cabimento”, frisou Marcelo à polícia.

Bocão descreveu o patrão como uma pessoa “fria”, “dissimulada” e que se gabava, em conversas de bar, de ter “mandado alguns para o saco”. Também disse que temia ser “morto dentro da cadeia” a mando de Rinaldo, tamanha a influência do político.

O pistoleiro concluiu o relato afirmando que, meses antes, fora procurado pelo vereador, que ofereceu R$ 15 mil pela morte de dois colegas de Câmara — os mesmos que, anos antes, participaram do acerto que possibilitou que ele assumisse o mandato. “O motivo era uma briga por política”, resumiu Bocão, que nega ter topado a proposta.

Os depoimentos acabaram revelando a autoria de uma série de assassinatos que não haviam sido elucidados na última década. Alguns estavam até arquivados, sem autoria. O sertão tem uma história marcada pelo coronelismo e por disputas políticas resolvidas à bala. Essa realidade se perpetuou e tem reflexos até hoje no contexto político na região. O Rinaldo conseguiu espaço na política justamente por causa do medo que desperta nas pessoas

— Delegado Cristiano Jacques, responsável pela investigação que culminou na prisão do ex-vereador

‘Reconhecida influência’

Após ser preso, Rinaldo do Gavião passou a responder a cinco processos diferentes por três homicídios consumados, dois tentados e por posse ilegal de munição. Considerado perigoso, o vereador logo foi transferido para a Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa, a mais de 400 quilômetros de distância de Princesa Isabel. Todos os seus julgamentos foram realizados em comarcas vizinhas, por conta da “reconhecida influência do réu naquela região sertaneja” e também “pelo temor que ele impõe por seu envolvimento em crimes de homicídio”.

Rinaldo acabou condenado em dois processos. Pelo atentado contra Peba, foi sentenciado a 9 anos e 4 meses de prisão, com um ano adicional pela posse de munição. Mas nem a prisão nem as condenações foram suficientes para tirá-lo do jogo eleitoral.

— Não queria entrar na política, não tinha esse sonho. Foi meu marido que me convenceu numa visita na prisão. Fizeram essa injustiça só para tirá-lo das eleições, mas não vão conseguir — diz Patrícia.

A assistente social se candidatou pela primeira vez em 2020. Nona mais votada, com desempenho superior ao do marido, ela só não ingressou na Câmara por conta do quociente eleitoral. Neste ano, após o retorno de Rinaldo, projeções de seu partido indicam que Patrícia deve estar entre os primeiros cinco colocados. Adesivos colados nas fachadas das casas — uma tradição da cidade — atestam o favoritismo: há propagandas da assistente social até mesmo em residências que declaram voto no candidato a prefeito da coligação adversária.

A proximidade das eleições, no entanto, não interrompeu o bangue-bangue. Em 2 de dezembro de 2023, Jonas Galdino, o ex-comparsa responsável pela denúncia que levou à condenação de Rinaldo, deixava a cadeia da cidade quando escapou de uma nova emboscada. Seu irmão, Alandjones Galdino da Silva, morreu no ataque a tiros de um motoqueiro. A polícia investiga se Rinaldo, que já estava de volta à cidade, participou do crime.

— Graças a Deus, botaram uma tornozeleira no meu marido. Se não, com certeza diriam que era ele na moto — argumenta Patrícia.

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Redação

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