Jogo Sujo

Pinacoteca ilumina alegorias de Lygia Clark sobre o corpo

[RESUMO] Exposição detalha três décadas, dos anos 1950 aos 1980, do percurso de Lygia Clark, período em que a artista, dialogando com mudanças políticas e culturais significativas no mundo, pensou alegorias sobre o corpo e ampliou as possibilidades da escultura moderna.

A exposição “Lygia Clark: Projeto para um Planeta”, sob curadoria de Ana Maria Maia e Pollyana Quintella, em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo, coloca em debate, de forma adensada, a maneira como essa singular artista pensou alegorias sobre o corpo em um contexto político-cultural de mudança significativa no mundo.

A mostra, dividida em núcleos temáticos e não exatamente em ordem cronológica, enfatiza um processo de elocubração que parecia antever inconscientemente os seus próximos passos.

Lygia observou que, na justaposição do “passe-partout” de uma obra a um elemento de colagem que tivesse a mesma cor, uma linha aparecia entre eles. Essa linha limítrofe e não traçada, que também aparecia na junção de portas e batentes, foi o motivo condutor para a “quebra da moldura”, uma vontade de tornar a pintura não mais planar. Ela recebeu o nome de linha orgânica.

Em 1952, essa linha apareceu nos trabalhos quando Lygia forçava incisivamente o grafite do lápis sobre o papel para demarcar a construção de módulos na série “Planos em Superfícies Moduladas”. Nesse momento, ela já elaborava premonitoriamente o conceito das dobradiças dos “Bichos” (1960). Esse dado incisivo do grafite será substituído pelo bisturi em 1954.

Naquele ano, Lygia produz as suas primeiras “Superfícies Moduladas”, deixando o papel e assumindo o compensado como suporte. Ela corta a madeira, criando um sulco entre os módulos geométricos. Já previa, como ela dizia, a “morte do plano” e o salto da pintura para o espaço.

Em 1959, as pinturas incharam, se transformaram nos “Casulos”, objetos feitos em metal que já apontavam signos como o vazio e o corte que serão trabalhados seguidamente pela artista, e viraram “Bichos”. Os módulos geométricos planificados das pinturas se tornaram tridimensionais e passaram a ser movimentados por meio de dobradiças.

“Bichos”, a série mais icônica da artista, são constantemente lembrados pela sua experiência primeira: a participação. Quase sempre lida de forma um tanto rasa, a participação que Lygia promove com a série, em um contexto brasileiro de euforia pelo governo Juscelino Kubitschek e depois pelas reformas de base de João Goulart, é sinônimo de uma crise.

Os suportes tradicionais da arte pareciam não dar mais conta de outras leituras de mundo que se colocavam para os artistas. A obra de arte não só tangenciava distintas formulações (os “Bichos” seriam esculturas, uma fase seguinte da pintura ou objetos transicionais?) mas cada vez mais se aproximava de uma ideia de corpo, não só na sua forma alegórica, mas também na requisição do espectador para a completude do trabalho.

Ferreira Gullar apontará essa crise com a sua teoria do não objeto, em 1959. Entre fins da década de 1950 e o início da seguinte, são inúmeros os exemplos de contestações formais, conceituais e políticas que afetam a cultura brasileira e que pedem o exercício do corpo do público.

“Bichos” dão continuidade a esse signo do corte que é tão frequente na obra de Lygia Clark, vide não só na ação do bisturi sobre o compensado ou do metal recortado nos “Casulos” e “Trepantes” (1964), revelando o volume da escultura, mas substancialmente na imagem simbólica de um corpo em pedaços.

Acho sintomático que entre 1964 e 1968, respectivamente início do golpe militar e recrudescimento da censura e da violência, a artista se volte para a produção dos “Objetos Sensoriais”, e essa alegoria do despedaçamento seja mais intensa.

Não corroboro a ideia de que a obra de Lygia seja uma leitura política stricto sensu sobre a crueldade da ditadura. Lembro que em 1968 Lygia parte para Paris convidada para ser professora na Sorbonne e se afasta, em certa medida, da realidade da violência no país.

Por outro lado, não se pode negar que o contexto político e intelectual —lembremos a contribuição, por exemplo, do pós-estruturalismo para a leitura sobre corpo e carnalidade— foi condição tácita para a arte daquele período.

Se os “Bichos” concentram um elemento da euforia e do sadismo do público ao torcer aquele corpo metalizado para saber quais são os direcionamentos e formas possíveis, os “Objetos Sensoriais” vão na direção de um corpo mutilado.

“Pedra e Ar” (1966), um saco plástico preenchido de ar, tendo em uma das suas pontas uma pedra que necessita ficar equilibrada à medida em que apalpamos a obra, é uma alegoria não só de um pedaço de corpo, um pulmão, em estado fragilizado, que, por sua vez, cria consonância com o som emitido por outro “Objeto Sensorial”, o “Respire Comigo” (1966), um fragmento de tubo usado por escafandristas.

É, sobretudo, uma mudança de atmosfera: a alegria intensa e expansiva lentamente se move para um aspecto mais íntimo e tangencialmente melancólico após 1964. Curiosamente, a história política brasileira passava por um estado parecido: saímos da intensidade modernizante dos anos 50 para a acachapante prostração do golpe.

É conhecida a história de que a canção “If You Hold a Stone”, de Caetano Veloso, é uma referência à obra de Lygia Clark que fazia uso de pedras em suas obras sensoriais. O ritmo compassado da voz do cantor e compositor transmite também o exercício de um tempo cauteloso.

Duas salas da exposição se dedicam às proposições da artista que, inclusive, estão sendo ativadas novamente. Realizadas com seus alunos e outros interlocutores em Paris nos anos 1970, proposições como “Baba Antropofágica”, “Rede de Elásticos” e “Estruturas Vivas”, todas tendo a linha orgânica como meio de comunicação, evidenciam novas práticas de socialização e “de contestação às hegemonias”, nas palavras das curadoras. Era o momento de confluência de movimentos que discutiam a respeito dos direitos sociais, raciais e de gênero.

Diferentemente da performance, Lygia desmistifica o lugar da artista ao assumir o estado da proposição. Sua obra não precisava da presença dela para ser comunicada. Como dizia, “atitude romântica do artista que ainda precisa de um objeto, mesmo sendo ele o objeto, para negá-lo”.

Cabe destacar que a exposição é pontuada por registros do filme “O Mundo de Lygia Clark”, dirigido por Eduardo Clark em 1973, um raro documento sobre as proposições de Lygia, tendo a própria, e não a crítica, argumentando sobre o seu próprio processo de criação.

O conceito de um corpo alegórico em pedaços na arte brasileira daqueles tempos não foi debatido, é certo, apenas por Lygia. Guardadas as especificidades, artistas como Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Antonio Dias, Artur Barrio, Carlos Zilio, Carmela Gross, Lygia Pape, Vera Chaves Barcellos, Wanda Pimentel, entre muitos outros, também avançaram sobre esse tema.

Clark, entretanto, guarda uma peculiaridade: esse trauma era experimentado na forma de um objeto que podia ser tocado, analisado, inclusive rechaçado. Corpo do sujeito e obra se confundiam e passavam pela mesma crise: um estado de transformação e insubordinação que estilhaçava o reconhecimento de si próprio. Não é à toa, nesse sentido, que é presentificado nesse corpo o estado da cegueira. Lygia faz uso de inúmeras proposições que têm a máscara como elemento.

“A Casa É o Corpo ou Labirinto Vivencial” (1968), exposta em uma das salas da exposição, é exemplo significativo dessa qualidade do despedaçamento ao mesmo tempo que abre outra perspectiva sobre uma metáfora do corpo.

Dividida em quatros módulos nomeados como penetração, ovulação, germinação e expulsão, o participante vivencia a experiência simbólica do nascimento. No último módulo, diante de um espelho deformante, o participante, transfigurado em “recém-nascido”, tem a sua primeira visão sobre si mesmo, difusa e mutilada. Por outro lado, para Lygia, o nascimento era sinônimo de autodiferenciação, um processo doloroso, dramático: “ser fecundada e ovular” é a “minha maneira de me amarrar ao mundo”.

Esse estado labiríntico é demonstrado pela curadoria na forma como a estrutura topológica da fita de Moebius é problematizada ao longo da trajetória de Lygia Clark. Desde a indefinição entre interior e exterior na fita sinuosa de metal do “Trepante”, que cria a situação óptica de que várias linhas se entrecruzam, até o “Caminhando” (1963), onde a fita de papel tem suas extremidades dobradas e coladas para que, em seguida, seja cortada e a sua forma partida.

Tudo isso representa o fim de um ciclo: a obra de Lygia se “desintegra” aos poucos e finalmente se parte para caminhar em direção à precariedade. Ou melhor, a uma obra que se transmuta (metaforicamente) em corpo para que possa ser vista com todas as suas fragilidades e especulada, tanto no sentido de espelhamento quanto de investigação, pelo público.

Esse gesto se tornará mais radical a partir de 1976, quando a artista retorna ao Rio de Janeiro depois de 8 anos em Paris, e seu ateliê passa a ser também um consultório. Lygia começa a Estruturação do Self, método terapêutico individualizado em que usa os objetos relacionais —almofadas, objetos feitos com meia-calça, entre outros materiais— diretamente no corpo de seus pacientes, a partir de relatos dos mesmos. Os objetos preenchiam “vazios” que eram verbalizados à Lygia (como a estopa que era usada dentro da sunga para preencher, no discurso do paciente, a sua vagina).

Esse acontecimento consta no filme “Memória do Corpo” (1984), de Mário Carneiro, presente na mostra, que também documenta uma fictícia sessão em que Lygia tem como paciente o crítico de arte Paulo Sérgio Duarte.

Ao pôr a crítica no lugar da entidade a ser curada, conscientemente ou não, elabora uma resposta sarcástica ao fato de que sua prática terapêutica não era legitimada pelo meio. E não exatamente por Paulo Sérgio, para deixar claro.

Lygia Clark: Projeto para um Planeta

Quando De quarta a segunda, das 10h às 18h; quintas, das 10h às 20h (gratuito a partir das 18h). Até 4 de agosto

Onde Pinacoteca de São Paulo (pça. da Luz, 2, São Paulo)

Telefone 11 3324-1000

Preço R$ 30

Classificação Livre

Redação

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